Antes que existissem tubos de tinta e catálogos de cores, as tonalidades usadas em casas, objetos e murais eram extraídas diretamente da terra. Comunidades tradicionais em todo o mundo desenvolveram suas próprias receitas de pigmentos a partir de elementos locais como barro, cinzas, carvão, folhas e frutos. Esses saberes passaram de geração em geração como parte da vida cotidiana e também como expressão estética e simbólica profundamente enraizada no ambiente.
Resgatar essas receitas é também valorizar o conhecimento ancestral e entender como as cores surgem da relação direta com a paisagem. Cada preparo revela escolhas técnicas refinadas, feitas por observação e experimentação, que muitas vezes superam em eficiência soluções industriais contemporâneas.
O valor cultural dos pigmentos naturais
Nas comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponesas, o pigmento nunca foi um insumo isolado. Ele fazia parte de um sistema de construção do mundo — seja no tingimento de tecidos, na pintura de corpos cerimoniais ou na coloração de paredes de barro. As cores tinham significados espirituais, sociais e ambientais.
Além disso, por serem produzidos com elementos do entorno imediato, esses pigmentos promoviam um tipo de economia circular, onde nada era desperdiçado: o que sobrava da cozinha podia virar corante; o que saía da roça podia ser transformado em tinta. Essa lógica de reaproveitamento é uma referência poderosa para quem busca práticas mais sustentáveis hoje.
Ingredientes frequentes nas receitas ancestrais
Embora cada região desenvolva sua paleta própria, alguns ingredientes aparecem com frequência na produção tradicional de pigmentos:
Barros coloridos (ricos em ferro, manganês, sílica)
Carvão vegetal (para tons pretos e cinzentos)
Urucum e jenipapo (para vermelho e azul)
Folhas e cascas (como a da cebola-roxa ou do eucalipto)
Cinzas de fogueira (como base alcalina ou clareador)
Óleos naturais (de babaçu, mamona ou linhaça para fixação)
Colas vegetais (como goma de mandioca ou baba de cacto)
Cada um desses elementos exige um modo específico de preparação e aplicação, que será descrito nas receitas a seguir.
1. Tinta de barro vermelho com goma de mandioca (Norte e Nordeste do Brasil)
Esta receita é comum em casas de taipa e em painéis decorativos nas regiões semiáridas.
Ingredientes:
2 partes de barro vermelho seco e peneirado
1 parte de goma de mandioca cozida
Água limpa, o quanto baste
Preparo:
Coar e secar o barro: peneire bem o barro e deixe-o secar à sombra até ficar bem fino.
Preparar a goma: cozinhe a goma de mandioca até obter uma textura de cola espessa.
Misturar: combine o barro seco com a goma ainda morna e adicione água aos poucos até atingir uma consistência cremosa, própria para pincel ou broxa.
Aplicação: usar sobre paredes de barro ou reboco cru, sempre com a superfície ligeiramente úmida.
Essa tinta cria uma cobertura opaca, uniforme e extremamente durável, além de ajudar na preservação do reboco contra fissuras.
2. Pigmento preto de carvão e baba de cacto (sertão e cerrado)
O carvão vegetal finamente moído era muito utilizado em pinturas corporais e também em murais rituais em rochas e ocas.
Ingredientes:
2 partes de carvão vegetal em pó (peneirado)
1 parte de baba de cacto (mandacaru ou palma)
Água filtrada, se necessário
Preparo:
Triturar o carvão: reduza o carvão a pó usando um pilão, depois peneire.
Extrair a baba: corte o cacto e coe a seiva viscosa.
Misturar: combine os dois até formar uma tinta densa e preta intensa.
Uso: a baba age como fixador natural, sendo eficaz sobre madeira, pedra e reboco cru.
Essa tinta seca rapidamente e pode ser usada para traços finos, padrões gráficos e contornos.
3. Tinta ocre de cinza e folhas de eucalipto (sul do Brasil)
Muito usada por comunidades rurais do Paraná e Santa Catarina, esta receita combina tons terrosos e aromas suaves.
Ingredientes:
1 parte de cinzas de fogueira peneiradas
2 partes de barro amarelo ou areia ocre
Chá forte de folhas de eucalipto
Goma de amido (opcional)
Preparo:
Ferver as folhas: prepare um chá forte de eucalipto e deixe esfriar.
Misturar os sólidos: combine a cinza com o barro ou areia.
Adicionar o chá: despeje aos poucos até obter uma mistura cremosa.
Opcional: adicionar uma colher de goma de amido para melhor aderência.
O resultado é uma tinta com perfume herbal, boa para interiores e áreas secas.
4. Pigmento azul de jenipapo (uso indígena na Amazônia)
Utilizado principalmente em pintura corporal e arte ritualística. A cor azul surge após contato com o oxigênio.
Ingredientes:
Polpa do jenipapo verde (fruto não maduro)
Água morna (opcional)
Preparo:
Extrair a polpa: corte os frutos e retire a parte interna com uma colher.
Aplicar fresco: o suco é aplicado diretamente e adquire cor azul em contato com o ar após alguns minutos.
Fixação: pode ser misturado com óleo de andiroba para maior durabilidade.
Apesar de ser temporário, o azul do jenipapo tem alto poder de tingimento e profunda conexão simbólica com os povos originários.
5. Corante vermelho de urucum e óleo de babaçu (região amazônica e Maranhão)
Comum tanto em pintura corporal quanto na coloração de paredes e objetos cerimoniais.
Ingredientes:
Sementes secas de urucum
Óleo de babaçu ou de coco
Panela de barro ou ferro
Preparo:
Aquecer o óleo: leve ao fogo baixo o óleo até ficar morno.
Adicionar as sementes: mexa até que liberem cor intensa.
Coar: retire as sementes e use o óleo pigmentado como tinta.
Aplicação: ideal para superfícies de madeira, barro cozido e objetos rústicos.
Além da cor vibrante, o urucum oferece propriedades repelentes de insetos e proteção solar, motivo pelo qual era amplamente usado pelos povos indígenas.
Tabela: Receitas Tradicionais de Pigmentos Naturais
Elemento Natural | Cores Obtidas | Método de Extração | Armazenamento Ideal | Aplicações Mais Indicadas |
Barro vermelho | Tons de vermelho, ocre | Secar, moer e peneirar o barro de laterita ou terra roxa | Pote de vidro hermético, local seco | Paredes internas, murais artísticos |
Carvão vegetal | Preto fosco | Queimar lenha dura sem oxigênio, moer fino | Pote metálico ou vidro com tampa | Pintura sobre madeira, cerâmica, papel artesanal |
Urucum (sementes) | Laranja-avermelhado | Triturar as sementes secas e misturar com óleo ou álcool | Pote de vidro opaco, em local fresco | Pinturas decorativas, tingimento de tecidos |
Argila branca (caulim) | Branco, bege pálido | Retirar impurezas, secar ao sol e peneirar | Frasco de vidro seco, bem tampado | Base para tintas, mistura com outros pigmentos |
Cúrcuma (açafrão-da-terra) | Amarelo vibrante | Ralar e secar a raiz; moer até formar pó fino | Pote hermético longe da luz | Papel, tecidos naturais, acabamento decorativo |
Folhas de jambolão | Verde escuro a acinzentado | Triturar e ferver em água; reduzir até formar pasta espessa | Geladeira, em frasco escuro | Pintura temporária em papel e parede porosa |
Cascas de angico | Marrom, castanho claro | Ferver cascas em água, coar e reduzir até formar tinta | Geladeira, em frasco fechado | Estampas em tecidos, tintas aquosas |
Pó de pedra (hematita) | Vermelho intenso | Moer hematita bruta com almofariz, peneirar | Frasco seco, protegido da umidade | Pinturas resistentes em argamassa ou madeira |
Carqueja seca | Amarelo esverdeado | Triturar folhas secas, misturar com álcool, coar | Vidro âmbar com tampa, refrigerado | Aplicações em papel artesanal, ilustrações botânicas |
Sementes de jenipapo | Azul escuro, quase preto | Amassar sementes frescas, fermentar e aplicar diretamente | Usar fresco, pode ser congelado | Pintura corporal, arte efêmera sobre madeira |
A sabedoria da terra nas mãos de quem pinta
Cada uma dessas receitas representa mais do que uma fórmula. Elas são o testemunho da capacidade humana de dialogar com a natureza, observando suas cores, texturas, ciclos e transformando tudo isso em expressão visual. O ato de fazer uma tinta do zero, com elementos locais, exige paciência, sensibilidade e respeito pelo tempo das coisas — qualidades que escasseiam nas práticas aceleradas de hoje.
Ao trazer essas técnicas ancestrais de volta ao uso contemporâneo, você não apenas cria com beleza, mas também participa de uma tradição silenciosa que transforma o ordinário em arte. Fazer sua própria tinta é uma forma de resistência, de pertencimento e de cuidado com o mundo que nos cerca.